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quarta-feira, 11 de abril de 2012

Reencarnação para os gregos (Orfismo)




O orfismo é um movimento religioso complexo onde se detectam influências dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e, obviamente, orientais. Teria sido fundado por Orfeu, um herói lendário da Grécia e patrono da música.

Há dúvidas se Orfeu teria sido um personagem histórico. Reza a lenda que ele teria nascido na Trácia e era filho de uma Musa (provavelmente Calíope, patrona da poesia épica e a mais importante das musas) e Eagros, rei da Trácia. Outra versão apresenta-o como filho do próprio Apolo. Orfeu é considerado como o maior músico da antiguidade, não só pela música, como pelo canto. Todos os poetas antigos celebraram sua lira e sua cítara, que teria sido inventada ou aperfeiçoada por ele. Seus acordes eram tão melodiosos que os homens e os animais quedavam paralisados para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a seus pés como cordeiros; as árvores vergavam para melhor escutá-lo; os homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade. Educador da humanidade, conduziu os Trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos "mistérios", completou sua formação religiosa e filosófica viajando pelo mundo. Ao retornar do Egito, divulgou na Grécia a ideia da "expiação das faltas e dos crimes", bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos, prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse.

Possui-se hoje uma visão razoável do orfismo através dos diversos escritos, principalmente os textos de Platão e Virgílio, que o integraram no seio de suas obras. O orfismo oscila entre o culto a Dioniso (ou Dionísio), que sempre desejou romper a camisa-de-força da religião tradicional da polis grega, e Apolo, cuja seriedade corrigia os excessos e os desvairios dionisíacos. Esta aproximação que Orfeu faz dos dois deuses antagônicos tem um certo sentido: segundo Eliade, o espírito grego exprime por ela sua esperança de encontrar uma solução às crises desencadeadas pela ruína dos valores das religiões homéricas.

Mitologia
Ovo cósmico


Orfeu é essencialmente um reformador. O orfismo quebra com a religião homérica, principalmente no tocante à sua teogonia. Salienta-se que a teogonia de Homero foi transmitida pelos rapsodos gregos. Sumariamente, a teogonia órfica afirma o seguinte: na origem estava Cronos (o Tempo) e dele saíram o Éter e o Caos, que geraram o Ovo Cósmico, um ovo de prata imenso (daí a proibição de se comerem ovos). Desse Ovo surgiu o deus andrógino Fanes, mais tarde chamado de Eros. Após seu nascimento, a parte superior do ovo tornou-se o céu e a parte inferior, a terra. Fanes criou a Lua e o Sol, os outros deuses e o mundo. Zeus, contudo, engole Fanes e toda a criação. Houve a produção de um mundo novo, tornando-se, a partir daí, o criador único. Um papiro, descoberto em 1962, revela uma teogonia ainda mais radical: um verso, atribuído a Orfeu, proclama que "Zeus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas". A seguir, Zeus criou um numeroso panteão no qual é preciso salientar Dioniso-Zagreu, que terá papel fundamental no culto do orfismo.

A mitologia conta que Zagreu, o primeiro Dioniso, era filho de Zeus com Sêmele. Os Titãs, a mando de Hera, raptaram Zagreu, mataram-no e cozinharam-no num caldeirão. Em seguida, devoraram-no. Zeus, possesso, fulminou os Titãs, transformando-os em cinzas. Dessas cinzas nasceram os homens, com sua dupla natureza: o mal advindo de sua natureza titânica, e o bem, representado pelo menino Dioniso-Zagreu, que os Titãs tinham devorado. A chispa do divino, que o homem carrega dentro de si, advém, pois, de Dioniso, deus da fertilidade e também da morte. Na religião dionisíaca inexiste, contudo, esperança escatológica, enquanto o orfismo é essencialmente soteriológico (prega a salvação humana).

Características

O orfismo rejeitava os ritos antigos, nos quais os iniciados despedaçavam animais ainda vivos, para consumo do sangue e da carne, pois os orfistas eram radicalmente vegetarianos.

De Apolo, herdou uma componente da catarsis (purificação, ou purgação), tão praticada no oráculo apolíneo de Delfos, mas era radicalmente contra a ideia de Apolo de que esta visava prioritariamente a purificar o homicídio. Os órficos eram ascéticos, que se purificavam nesta e na outra vida, visando libertar-se do ciclo das existências. A religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem morrer.

Os órficos substituíram a "folia" dionisíaca pela catarsis apolínea. Através da prece e da oferenda, a purificação é um dos ritos principais das religiões antigas. Tudo que é impuro provoca a repulsão dos deuses e, por impuro, entende-se tanto a alma quanto o corpo. Convém notar que, por purificação, entende-se tanto a individual como a coletiva. Na antiguidade grega, quando se cometia um crime, o castigo recaía não só sobre o criminoso como sobre todo o seu clã. Assim, uma pretensa purificação de um crime tinha que ser não só individual como coletiva. Os cultos dionisíacos eram secretos e envoltos em mistério (ao contrário dos cultos apolíneos, que eram públicos). Por sinal, conhece-se muito pouco destes ritos secretos e destas iniciações órficas. Os órficos resolveram o problema da culpa de forma original na cultura grega: a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se paga aqui; quem não conseguiu purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no além e nas outras reencarnações até a catarsis final.

A semelhança entre o orfismo e o pitagorismo, nos aspectos religiosos, é por demais sintomática: o dualismo corpo-alma, a crença na imortalidade da alma, a metempsicose, a punição no Hades (inferno), a glorificação final da psiqué nos Campos Elíseos, o vegetarianismo, o ascetismo e a importância das purificações. Por outro lado, o orfismo era menos elitista do que o pitagorismo, menos esotérico e não se imiscuia em política.

Reencarnação

É importante aqui salientar o caráter monoteísta do orfismo, que representa uma ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos homéricos. O orfismo propugna por uma noção de um deus criador, soberano, simbolizando a vida universal. Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico é na parte escatológica, ou seja, na ciência dos fins últimos do homem, naquilo que deverá seguir à vida terrestre. A descida ao Hades simboliza a vida após a morte. A concepção órfica da imortalidade advém de um crime primordial: a alma está enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que significa corpo-túmulo). Como consequência, a existência encarnada se assemelha mais a uma morte, e o falecimento constitui o começo da verdadeira vida. Esta verdadeira "vida" não é obtida automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos. Após certo período, ela reencarna. A influência egípcia – julgamento de Osíris e reencarnação – é insofismável no orfismo. Nessa via crucis, de reencarnação em reencarnação, até mesmo em corpo de animais (metempisocose), a alma vai se purificando. Nesses intervalos reencarnacionistas a alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo do inferno, onde sofre um ciclo de pesadas penas. Quando completamente purificada, sai desse ciclo de gerações para reinar entre os heróis. O destino, obviamente, não será o mesmo para os iniciados órficos e os profanos. O mortal comum profano deverá percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar.


Inscrições órficas numa fina lâmina de ouro

Um artefato importantíssimo no orfismo são as "lamelas órficas". São pequenas lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais. Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade.

Numa das lamelas encontradas estão incrustados versos de aconselhamento à alma do morto para sua viagem em direção ao Hades. Em lá chegando, deve escolher entre um caminho da direita e um da esquerda. "À esquerda da morada do Hades, tu encontrarás o Lago da Memória (Lethes), e os guardiões estarão lá. Diga-lhes... eu sou o menino da Terra e do Céu estrelado, mas estou morrendo de sede. Dá-me rapidamente a água fresca que flue do Lago da Memória". Para a alma que deve retornar a terra para reencarnar-se, essa água do Lethes tem por função não esquecer sua existência terrestre, mas eclipsar a recordação do mundo pós-morte. O orfismo assim reverte a função da água do Esquecimento pela nova doutrina da transmigração. O esquecimento não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber na fonte do Lethes reencarna e será novamente projetada no ciclo do devir.

Para aquelas almas que não precisam mais se reencarnar, é aconselhado evitar a água do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E está escrito numa das lamelas: "Venho de uma comunidade de puros, ó puro soberano dos Infernos". Ao que Persófone replica: "Saúdo-te, toma o caminho da direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de Perséfone".

A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério, pelo longo caminhar da mesma em direção a outra vida, mas sobretudo, simboliza a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se, para os gregos "os mortos são aqueles que perderam a memória", o esquecimento para os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à vida.


Conclusão

Mosaico de Orfeu, encontrado numa vila romana.


Orfeu não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser reinterpretada pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Especialmente cristãos, se considerarmos que o cristianismo, como o conhecemos, floresceu na Grécia e em Roma. Nos afrescos das catacumbas romanas encontram-se imagens de Orfeu, tangendo sua lira no meio de animais simbolicamente cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros e pombas. Noutros, encontram-se duas ovelhas: uma simbolizando Orfeu e outra, o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena, é representado como Bom-Pastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar Cristo de "Orfeu báquico". A semelhança dos simbolismos são flagrantes: o crime primordial dos Titãs e o pecado original de Adão e Eva; a consumação do corpo do deus cristão e do deus grego; Cristo como filho de Deus assim como Orfeu era filho de Apolo, são pontos comuns entre as duas doutrinas religiosas, numa visão simplista. Se pouco restou dos mistérios órficos, a figura de Orfeu tem cadeira cativa no inconsciente coletivo de nosso mundo.

Adaptado do artigo de
William Almeida de Carvalho

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