“Na noite de Espoleto, Francisco tinha posto um cheque em branco nas mãos de seu Senhor: “que quereis que eu faça?”. Mas o céu ainda não se havia manifestado.
Um dia o Irmão ia descendo por um caminho pedregoso e deu com uma humilde capela debruçada numa encosta. A ermida era dedicada a São Damião. Em seus muros haviam fendas que faziam perigar a igreja vetusta. A hera trepava alegremente cobrindo por completo as paredes laterais. Lá dentro não havia mais do que um simples altar de madeira, uns bancos e, no lugar do retábulo, um crucifixo bizantino. A capela humilde era atendida por um padre velhinho que vivia da boa vontade dos passantes.
O Irmão penetrou no ambiente sombrio, e logo que seus olhos se acostumaram com a escuridão, ajoelhou-se com reverência diante do altar, olhando para o crucifixo bizantino. Olhou-o longamente. Era um crucifixo diferente: não expressava dor nem causava pena. Tinha uns olhos negros bem abertos, por onde se manifestavam a majestade de Deus e os abismos da eternidade. Seduzido por aquela expressão de calma e de paz, Francisco ficou imóvel, não se sabe quanto tempo. Segundo os biógrafos, teve nesse momento uma altíssima experiência divina. O Irmão, entregue, deixou-se levar pela força da corrente, rio abaixo, para o Mar, a totalidade sem contornos, para os abismos sem fundo do mistério do Amor Eterno, em que o homem se perde como um pedacinho de papel. Desta vez o Amor tinha um nome concreto, uma figura determinada e uma história apaixonante: Jesus Cristo na cruz. A tradição conservou a oração do Irmão nessa manhã: “Glorioso e grande Deus, meu Senhor Jesus Cristo! Vós que sois a luz do mundo, ponde claridade, eu vos suplico, nos abismos escuros do meu espírito. Dai-me três presentes: a fé, firme como a espada; a esperança, larga como o mundo; o amor, profundo como o mar. Além disso, meu querido Senhor, peço-vos ainda um favor: que todas as manhãs, ao raiar da aurora, amanheça como um sol diante de minha vista a vossa santíssima vontade para que eu caminhe sempre em vossa luz. E tende piedade de mim, Jesus.” Nesse momento, sem que ninguém pudesse dizer como nem por onde, ouviu-se claramente uma voz que parecia proceder do Cristo: “Francisco, não vês que minha casa está ameaçando ruir? Corre e trata de repará-la”. Ele nunca tinha ouvido pronunciar seu nome numa totalidade tão inefável. O Senhor o chamara pelo seu próprio nome! Era prova de predileção. “Com muito gosto, meu Senhor!”, foi a resposta de Francisco à ordem recebida. Com certa precipitação tomou a ordem ao pé da letra. Não havia tempo a perder. Deus tinha falado e até dado uma ordem. Era hora de agir. Precisava de dinheiro para comprar material de construção. Com as vistosas fazendas de seu pai, fez um negócio completo. Com a bolsa no alto e sacudindo-a fortemente para que as moedas soassem como um clarim de guerra, Francisco apresentou-se diante do velho sacerdote. Falou-lhe com entusiasmo do seu projeto de restauração da vetusta ermida. Suplicou ao venerável capelão que aceitasse a bolsa integralmente. O bom padre não sabia para onde olhar. Tudo aquilo fazia-o pensar que o rapaz tinha perdido a cabeça ou que estivesse caçoando dele. Por isso, com grande estranheza do Irmão, o velho capelão recusou a suculenta oferta. Francisco agarrou a bolsa e atirou-a ruidosamente contra o batente da janela. Despediu-se para sempre do dinheiro e, pelo que parece, nunca mais em sua vida chegou sequer a tocar o apetecido metal. Dias depois, preocupou-se em encontrar o capelão. Ajoelhou-se com suma reverência a seus pés, pediu-lhe a bênção, explicou como o Senhor lhe havia mandado reconstruir ermidas começando pela de São Damião. Depois, retirou-se para o interior da ermida para reviver diante do crucifixo bizantino aquele momento de saciedade divina que tinha experimentado semanas atrás. Sem sair da ermida, começou a projetar os modos e meios para reconstruir as paredes arruinadas. Foi uma quimera, dizia a si mesmo. Não sei como eu podia confiar no dinheiro apenas algumas semanas atrás. Eu devia estar cego quando pretendi ajeitar a capela com moedas sonoras e brilhantes na mão. Vã ilusão! Disse em voz alta. “São as mãos, o trabalho, o suor, o carinho – ferramentas da Senhora Pobreza – que constroem as obras do Senhor.”
Trechos extraídos do livro: O Irmão de Assis, de Ignácio Larrañaga (Editora Paulinas).
A cruz de São Damião, a original da experiência de São Francisco.
Está exposta numa capela lateral da Igreja de Santa Clara em Assis.
Possui 1,90m de altura, 1,20m de largura e 12cm de espessura e foi pintado por um artista italiano desconhecido, no século XII, em pano colado sobre madeira de nogueira.
Igreja de São Damião, com data do século VIII e IX.
Aqui, Francisco compôs, em 1225, o "Cântico das Criaturas", proclamando-se irmão de toda Criatura.
Aqui, Francisco previu que o lugar se tornaria a morada de Clara e das Damas Pobres de São Damião, que viveram aqui de 1211 até 1260.
Aqui, Francisco compôs, em 1225, o "Cântico das Criaturas", proclamando-se irmão de toda Criatura.
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